Photobucket - Video and Image Hosting Palimpnóia Artigos, Resenhas, Ensaios PALIMPNOIA ARTIGOS RESENHAS ENSAIOS

Linaldo Guedes

Um poeta sozinho tecendo o Nordeste

"Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho ímpar".
(Carlos Drummond de Andrade)


Triste mania, a de alguns poetas, essa de teimar com as palavras. João Cabral de Melo Neto escreveu, certa vez, que um galo sozinho não tece uma manhã. "Ele precisará sempre de outros galos", continuou. Parece até coisa de comunista, pensar na criação do mundo como uma coisa coletiva. Pena que sejam contraditórios os versos dos melhores poetas existentes no mundo. O próprio João Cabral pôs por terra essa sua tese galinácea. Desde Pedra do Sono (de 1940) esteve, nas letras, como uma verdadeiro galo solitário no mar poético da literatura brasileira. Construiu uma poesia única, ímpar, que sempre esteve mais para o poema Igual-Desigual, de Drummond, do que para o seu Tecendo a manhã.
João Cabral de Melo Neto tinha mania de Nordeste - outra característica própria e única de sua poesia. Desde a sua estréia em livro, colecionou seguidores. Na Paraíba, dois de cada três livros de poesias lançados por ano contêm o estilo conciso, enxuto e cerebral do pernambucano. Quase nenhum carrega nos versos o talento cabralino.
A originalidade na poesia de João Cabral de Melo Neto não está propriamente no estilo. Ligado cronologicamente aos poetas de 45, esteve sempre além-gerações. Atropelou os companheiros da época e os concretistas, em seguida, ao fazer uma poesia forte, nordestina e universal. Não ousou criar um novo estilo. Apenas ousou ser ímpar e tecer sozinho o Nordeste em sua poesia com o cheiro da cana e o gosto amargo da seca. Foi durante todos esses anos a única voz com ressonância fora da nossa região a falar sempre de nossas cores, nossas dores, nossos ácidos amores em seus poemas. Fez fama e foi sugerido várias vezes para o Nobel de Literatura assim. Fazia concessões aqui e ali para cantar outras musas, como Madri e Sevilha. Mas nunca escondendo sua sede eterna pelo Capibaribe.
Não duvidem dessa mania cabralina pelo Nordeste. Corram aos seus livros! Leiam os seus poemas! Como em Psicologia da Composição, cultivou o deserto de nossa região como um poema sem métrica. Escreveu contra a poesia dita profunda, mas ninguém falou sobre a força simbólica dos nossos espinhos com tanta profundidade.
Feito um cão sem plumas, observava não só a paisagem do Capibaribe. O rio era sua própria poesia, sua própria cidade, seu próprio passado. O poeta sabia dos caranguejos, do lodo, da ferrugem e também "tinha algo de estagnação dos palácios cariados". O rio que deslizava suavemente pelas correntezas e cortava pontes em outras paragens. Na psicologia do rio, difícil é entender como a poesia de João Cabral banharia o Nordeste com tanto amor. Viajando pelo rio, abandonava a sua primeira infância, molhava a infância derradeira de seu Pernambuco.
Seu Pernambuco, aliás, cantado em tantos versos... Recife, então, sempre assumia uma posição de vanguarda em sua retina poética. Tudo em torno do Capibaribe gerava poesia. E haja pregão turístico, lembranças do canavial e cemitérios pernambucanos perturbando a paz dos primeiros versos espanhóis. Após o canto da Andaluzia, o retorno para contemplar a maré baixa, porque "Todas lembravam o Recife/ este em todas se situa/ em todas em que é um crime/ para o povo estar na rua".
Como fugir do Nordeste se o retirante teima em perturbar a paisagem árida da região? Chama-se Severino, mas poderia ser José ou João, como o próprio Cabral em eterno retiro poético. A figura caricata de Severino parece querer perseguir o poeta por toda a sua obra. Severino conhece diversas mortes miseráveis e desde então o véu da tragédia nordestina parece não querer mais abandonar João Cabral. Severino retirante, que caminha a passos tristes para o Recife e filosofa sobre a vida, a outra vida Severina - adjetivo mais poético e original que já se encontrou para definir a miséria dos nordestinos.
Mas existem as facas! E elas cortam como lâminas! Não é uma faca-peixeira comum, igual aquelas que os sertanejos carregam nas cinturas no meio das feiras da região. Uma faca mais delicada, metáfora perfeita para a vida sempre cortante que levamos. Até porque João Cabral de Melo Neto sabia que no Nordeste, nas praias do nosso Nordeste, "nem tudo vem com agulhas e em lâmina:/ assim, o vento alíseo que ali visita/ não leva debaixo da capa arma branca./ O vento, que por outras leva punhais/ feito do metal do gelo, agulhíssimos,/ no Nordeste sopra brisa: de algodão".
João Cabral de Melo Neto falou dos hospitais, da caatinga, da cana-de-açúcar de hoje (e de ontem), do sol em Pernambuco e da urbanização do Nordeste. Falou e cantou os poetas e escritores nordestinos, como Joaquim Cardozo, José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Descreveu e amou a sua região com desbragado surrealismo (no início) e sutil ironia (depois). Afirmo, sem medo de exagerar: foi, em todos os tempos, a voz que melhor escreveu poeticamente sobre nossa sofrida região. Nem Manuel Bandeira (com suas evocações recifenses), nem Augusto dos Anjos (com seu cientificismo deprimido), nem qualquer outro poeta ousou insistir em tornar o Nordeste tão universal na linguagem da poesia. Foi, assim, nosso mais perfeito tradutor, tecendo sozinho a estiagem da nossa alma.


Linaldo Guedes é poeta e jornalista. Publica seus escritos no Blog Zumbi escutando blues